“A oralidade obriga as pessoas a dedicar tempo para ouvir e a fala não significa nada sem isso. É assim que criamos outro tipo de sociedade e relacionamentos.”
Queria aproveitar essa frase que Léonora Miano disse na entrevista que fiz com ela — saiu na edição de novembro da Vogue Brasil — para apontar uma reflexão que vem me tomando bastante tempo ultimamente: o que aconteceu com a nossa capacidade de ouvir? Discordar e argumentar com elegância, nem se fala. Estava conversando sobre isso com a querida Fabiane Secches, com quem apresento o podcast “Palavra & Imagem”, com outras pessoas que admiro profissionalmente e meus alunos, e existe a reclamação em comum: não há espaço para troca, ninguém se escuta e, caso discorde, ainda vem com violências verbais.
Sinto que isso está intimamente ligado ao tempo em que vivemos, no qual todo mundo “sabe” de tudo. De repente, livros, de repente, moda, de repente, beleza, de repente, arte, de repente, filmes, de repente, gastronomia, de repente, arquitetura. De repente, nada. Os famosos “tudistas”, que mudam ou agregam áreas do saber conforme o algoritmo. Sem qualquer pesquisa ou embasamento, diga-se. Algo que atinge a crítica cultural profundamente, tomada por “eu não gostei”, “eu faria diferente”, “eu eu eu eu”. Mas a obra não foi feita para o único “eu” que fala, ela foi feita para outras coisas, pensada para provocar algo além do “eu” — caso contrário, não seria arte.
É com essa falta de profundidade que estamos convivendo (e batendo palma). Quem, de fato, se preocupa com informações bem curadas, para além de hype ou números — e para além de acessórios que indiquem uma imagem talvez “culta”, porque tem muito disso também —, acaba sendo prejudicado dos dois lados. Os que não escutam e não querem dialogar, concordando ou discordando, e os que fingem que sabem de alguma coisa proliferando informações rasas e ganhando espaço com isso.

Ninguém precisa saber de tudo, é impossível. Ouvir, falar, conversar, discutir num nível respeitoso está em falta, dentro e fora das redes sociais. As vidas reais foram sucumbidas ao rito da performance, ao que aquilo vai trazer de ganho dentro de uma lógica capitalista. É dinheiro que vai atrair? É o status intelectual? Tento não ser uma pessoa saudosista ou que “naquele tempo era melhor”, mas tenho sentido falta de ler, ver e ouvir aqueles que realmente sabem do que estão falando. E não ser atingida por conteúdos diários de assuntos dos mais variados sendo comentados por pessoas que ontem estavam falando de dieta fitness e hoje resolveram comentar o Oscar.
É claro que áreas de interesse vão se interseccionar na vida de alguém. Quem gosta de gastronomia também pode curtir uma corrida, uma viagem, um filme, uma exposição, um artista, um estilista, uma banda. O que não significa que ela precisa transformar todos esses gostos em comentários pseudo críticos para não perder o timing da conversa do dia. Algo que também causa diversas consequências negativas no âmbito privado, como uma constante sensação de falta, de insuficiência, de comparação, culminando até em episódios de ansiedade.

Encontrei no livro “A Crise da Narração” (Editora Vozes), de Byung-Chul Han, um amparo pelo menos para as minhas angústias diante deste cenário. Neste pequeno volume, com pouco mais de cem páginas, o filósofo tece argumentos sobre a morte da nossa capacidade de contar histórias pela capitalização do storytelling. Quanto mais narrativas criamos – e aí, narrativas de si –, maior fica o vácuo narrativo, que “se manifesta como um vazio de sentido e desorientação”. Ao percebermos a construção desse storytelling – porque, sim, é perceptível –, “o momento interno da verdade” se perde. Viver, portanto, deixou de ser algo inerente à própria existência (no sentido filosófico) e passou a ser uma grande edição de vivências e acontecimentos, muitas vezes, propositalmente agendados para dar conta de uma glamourização da rotina.
O que Léonora Miano e Byung-Chul Han dizem é que, dentro desse cenário de tantos conteúdos sendo feitos, sobra pouco espaço para a escuta. Com isso, quem perde somos nós enquanto seres convivendo em sociedade. Falar e ouvir, escrever e ler, são duas pontas da estrutura básica da comunicação. Se quem fala não sabe do que está falando, e maquia isso com um storytelling bem-feito; e também só sabe falar e não escutar, a que ponto chegamos da nossa “interação social”? Uns fingem que falam, outros que escutam, e quando há discordância, ninguém sabe mais tecer conversas propositivas (e respeitosas).
Queria abrir esse novo canal de comunicação com vocês falando sobre tudo isso porque sinto que as redes sociais estão caminhando para um lugar complexo, e não queria ter toda a minha crítica canalizada em um só lugar – e nem depender tanto desses aplicativos. A vontade de criar essa newsletter era justamente para elaborar comentários maiores e mais profundos sobre filmes, livros e séries, interseccionando as minhas áreas de saber (semiótica, psicanálise e estética). Como não serei capaz de fazer isso sozinha na frequência que gostaria, alguns textos intercalados com os meus serão assinados pelo meu companheiro e também jornalista cultural, Artur Tavares, que tem um olhar sensível para temas que eu particularmente não tenho embasamento, como música, quadrinhos e filmes de terror.
Espero que vocês gostem dessa jornada, e sempre estarei por aqui para escutar, trocar e dialogar.
Um beijo,
P.J.
Se você também se interessa por questionar este cenário…
You’re Being Alienated From Your Own Attention, The Atlantic
Uma reportagem maravilhosa que aborda o valor da atenção como a grande moeda do nosso tempo: quem domina a atenção das pessoas, prospera – para refletir também sobre a quantidade de horas que passamos nas redes sociais.
O mundo do avesso – Verdade e política na era digital (Ubu), Letícia Cesarino
A partir de uma perspectiva mais política que filosófica ou comportamental, a autora nos faz refletir sobre o caráter de comunicação em massa das redes sociais e seus perigos. Fake news, pós-verdade, negacionismo e outros tópicos relevantes fazem parte da visão da antropóloga.
Era de ouro da TV acabou, Folha de S. Paulo
Uma entrevista com o criador de “The Wire”, David Simon, sobre a queda na qualidade das produções feitas pelos streamings e canais de TV, que buscam números e não necessariamente um conteúdo de fato original.
Ensinando Pensamento Crítico (Elefante), bell hooks
A partir de seus estudos da obra de Paulo Freire, a pensadora estadunidense continua suas provocações iniciadas em Ensinando a Transgredir para mostrar a urgência de uma educação pautada pela justiça social. Entre transmissão oral de conhecimento e colaboração, bell hooks faz um panorama interseccional sobre o pensamento crítico contemporâneo.
Uma frase que me pegou muito nesse livro do Byung-Chul Han foi: "narrar exige ócio". Além disso, nas minhas andanças pelo pinterest, vi uma frase que me marcou muito também: "você escuta para responder ou para compreender?" (autor desconhecido). Adorei seu texto!!
Oi, espero que esteja bem. Texto incrível. Tenho percebido que há uma necessidade imensa de falar bastante e uma negação à escuta. Tenho cuidado a cada dia para amplificar a minha escuta, numa necessidade de perceber o que é elaborado, dito, corporificado (pois o corpo também participa do discurso), para enfim produzir uma resposta. Com esse cuidado tenho percebido que minhas respostas se fundamentam com mais tranquilidade, sabe? Sinto que tenho perdido a necessidade de falar sobre tudo e me dado a chance de ouvir. Obrigado por esse texto, que chegou em um momento tão oportuno