#5 O problema de “Emilia Pérez”
Ainda estou aqui sem entender as 13 indicações deste filme ao Oscar
Todo ano, assisto aos filmes concorrentes ao Oscar, sem exceção. Mesmo quando isso ainda não fazia parte do meu trabalho. Existem os magníficos, os que a gente acredita até o fim mesmo sabendo que a Academia provavelmente vai escolher mais-um-filme-de-guerra, os achados, as surpresas, os esnobados. E aí tem “Emilia Pérez”, que este ano é o maior concorrente da corrida pela estatueta dourada, liderando sozinho com 13 indicações – “Wicked” e “O Brutalista” aparecem empatados na sequência, cada um com 10.
Eu não sou a maior fã, muito menos defensora de “Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo”, mas ele, sim, eu consigo compreender com linhas do raciocínio lógico porque chegou tão longe. “Emilia Pérez” não. Eu tenho plena consciência do lobby, do marketing, da agenda “pseudo-woke”, e ainda assim não faz sentido.
A sinopse é mais interessante do que o resultado visual dela: um líder de cartel no México decide fazer uma transição de gênero e pede ajuda para uma articulada advogada (Zoe Saldaña), que percorre o mundo (com fundos) para encontrar a solução – claro, discreta. Manitas quer se tornar a mulher que sempre sonhou ser. A transição acontece, anos se passam, agora como Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón), ela decide se reaproximar dos filhos e da ex-atual-mulher (Selena Gomez) e retornar ao país natal depois de uma temporada na Europa. Reencontra sua advogada e a coloca em mais uma missão de risco. Tudo dá certo, eles se reencontram, a consciência bate, ela decide abrir uma ONG para ajudar milhares de famílias mexicanas a colocarem um ponto final no desaparecimento de seus filhos, sobrinhos, tios, pais, causado pela violência dos carteis.
Seria ótimo não fossem as inúmeras tentativas do criador, Jacques Audiard, de fugir de qualquer profundidade que todos os temas elencados acima suscitam: transição de gênero, violência, desaparecidos, política versus criminalidade, crise de identidade, desigualdades extremas em países colonizados e por aí vai. Porém, como um belo colonizador, ele próprio, do alto da sua sabedoria iluminista, centrado no capital intelectual do mundo, decidiu que era maior do que todos esses assuntos e fez deles uma colcha de retalhos – com músicas.
Não há desenvolvimento de personagem, não há qualquer profundidade no tratamento de qualquer um desses tantos assuntos que ele achou que daria conta (detalhe: sem ter lido a respeito da situação no México), não há ressonância entre cenas e músicas (de um musical!), não há espaço para emoção, só a fabricação dela. As atuações são caricatas – e não quero nem comentar dos sotaques. E ainda estou aqui procurando respostas para as 13 indicações.
Te conto, apesar de não querer acreditar nas razões. Além da campanha massiva da Netflix, que distribui o filme lá fora, encabeçada por uma antiga pupila de Harvey Weinstein, o filme possui tudo o que outras mentes reducionistas precisam para colocar o Oscar como uma premiação atenta aos “problemas atuais” (México, gênero, violência histórica e sistêmica etc). Sobe a placa de “risos” para a plateia.
Mesmo concorrendo a Melhor Filme, “Emilia Pérez” está na categoria de Filme Internacional (antigo Filme Estrangeiro) por ser falado em espanhol e ter sido uma produção francesa. E é justamente nesse ponto que queria chegar nesta newsletter (desculpem a demora): o cinema internacional sempre foi a ponta fora da curva nas premiações estadunidenses. Histórias feitas pelos próprios países sobre eles próprios – no caso de “A Semente do Fruto Sagrado” não acontece exatamente assim por razões políticas, e as exceções vão existir. São filmes que fazem denúncias, revelam o outro lado da moeda de alguns fatos históricos, buscam dar nome, vida e dignidade para corpos antes marginalizados. É a chance de falar com um público externo, de aparecer em cinemas de outras cidades, de outro continente, quem sabe.
Aqui, porém, temos um filme que não fala a sua língua. O diretor não fala nada além de francês, e isso já diz muito sobre ele. Ele não se preocupou em gravar no México, o que poderia ter gerado empregos para os mexicanos que ele tanto queria “homenagear”. Ele não falava a língua das suas atrizes-protagonistas, se comunicavam por mímica ou por intermédio de uma tradutora. Pensar a linguagem que nos forma é poder abrir-se para outras tantas que formam tantos outros seres, é cavar no modo como se fala, se come, se vive, se move, se chora o que ali é diferente de si, e o que se pode aprender de novo com aquilo. É poder gerar empatia por meio da palavra (ou mesmo da imagem). E ele perdeu essa chance.
Wim Wenders é um diretor alemão que nos emocionou profundamente com o seu “Dias Perfeitos”, ambientado no Japão e falado em japonês – não é a primeira vez que essa relação se dá pelas telas, quem puder, assista “Tokyo Ga”. “Flow” é uma animação da Letônia feita por uma equipe de cinco pessoas e sem nenhuma fala, mas é totalmente compreensível as emoções dos animais. Não arrisco uma sílaba em norueguês e me conectei profundamente com “A Pior Pessoa do Mundo”, de Joachim Trier. Jonathan Glazer é britânico e construiu com originalidade um filme sobre a Segunda Guerra Mundial sem se apoiar em clichês do gênero com o dolorido e chocante “Zona de Interesse”. Aos 30 anos, Lukas Dhont parou o mundo com a sua sensível ótica da construção da masculinidade em “Close”. Quem não vibrou junto de Mads Mikkelsen no final do drama dinamarquês “Druk”, de Thomas Vinterberg? E nem mencionei a cena da sorveteria de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles.
Que tal a dor nos ossos causada pelo drama “Amor”, do austríaco Michael Haneke? Ou então a estonteante investigação de si a partir da arte de Paolo Sorrentino em “A Grande Beleza”? Não posso deixar de mencionar “Uma Mulher Fantástica”, do chileno Sebastián Lelio. “Cinema Paradiso”, “Tudo Sobre Minha Mãe”, “Um Homem e Uma Mulher”, “8 e ½”, “Ladrões de Bicicleta”, “O Discreto Charme da Burguesia”, “O Segredo dos Seus Olhos”, “Ida”, “O Apartamento”, “Roma”, “Drive My Car”. Citando apenas alguns dos destaques de Melhor Filme Internacional.
Como disse Bong Joon-ho ao receber o Oscar por “Parasita”, outro grandioso filme desta categoria, “quando vocês superarem a barreira das legendas, serão introduzidos a tantos outros filmes incríveis” – o “você”, aqui, é direcionado especificamente aos estadunidenses e, consequentemente, a Academia. Jacques Audiard, porém, decidiu seguir sem legendas, fazendo comentários mesquinhos sobre os mexicanos e a língua espanhola. Menos quando lhe era conveniente.
Enquanto isso, a linguagem formada a partir da língua nos proporciona experiências inenarráveis de atenção. O que resta na tradução, o coração que é heart em inglês, o aceitar não saber falar, mas aprender a ouvir, o se colocar no desconforto do indizível, enxergar a diferença e mergulhar sem medo no desconhecido. Filmes internacionais sempre nos provocaram nesse lugar, e é uma pena imensa que, agora, até a categoria menos óbvia do Oscar passe a ser mais um item mainstream na prateleira da indústria.
P.J.
que texto bom!
eu assisti esse no sábado e estou desde então resmungando "que filme ruim" pelos cantos. fui assistir de coração aberto porque acreditei, de verdade, que grande parte das críticas era um exagero do nosso espírito brasileiro clubista em clima de copa do mundo por causa de "ainda estou aqui", mas é um horror mesmo. é um desrespeito com a própria categoria esse filme ter sido indicado a melhor filme internacional. e além de todos os problemas de narração, estereótipos, atuações e personagens, ele comete o maior crime que um musical pode cometer, que é não ter UMA música boa. um filme que muito tenta e nada é.
Só mesmo muito lobby… inacreditável