#7 Mãos ao Alto!
Eric Hobsbawm, Robin Hood, turbotecnomachonazifascismo e a censura institucional na cultura
“E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido.”
Chico Science e a Nação Zumbi - “Banditismo por uma questão de classe”
A Companhia das Letras relançou “Rebeldes Primitivos: Estudo sobre as formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX” em fevereiro, a primeira obra do historiador britânico Eric Hobsbawm. Trata-se de um apanhado de textos que falam sobre grupos que praticavam crimes como formas de se rebelarem socialmente nas regiões camponesas da Europa (embora cite Padre Cícero no Brasil), os quais o autor aponta serem os embriões para as organizações urbanas dos partidos comunistas, das comunas, dos sindicatos e, enfim, das internacionais.
Deixando de lado nomenclaturas técnicas usadas por Hobsbawm, ele traz desde casos individuais, como de pessoas que roubavam de ricos e davam para pobres, e que acabaram inspirando o mito de Robin Hood, até organizações camponesas anarquistas na Espanha. O britânico passa também por bandos messiânicos na Itália, além da própria máfia, casos em que não havia de fato uma efervescência de vieses esquerdistas, mas que foram disruptivos em seus lugares e tempos de ocasião.
Publicado originalmente em 1959, quando Hobsbawm já tinha 42 anos, “Rebeldes Primitivos” inicia uma trajetória grandiosa do autor. Há muitas obras-primas, entre elas a quadrilogia “A Era da Revolução”, “A Era do Capital”, “A Era do Império” e “A Era dos Extremos”. Sempre sob viés marxista, o britânico também escreveu sobre economia, cultura, sobre Marx, Engels, jazz e a América Latina. Quem conhece o historiador sabe como ele pode ser assustador, com obras enormes, difíceis cheias de subtextos e notas de rodapé. No entanto, seu début literário é mais solto, leve, com histórias que não ultrapassam mais de 50 páginas e cuja linguagem não é nada complicada.
Por tratar de pessoas, grupos e bandos, as histórias narradas por Hobsbawm soam como contos pulp protagonizados por anti-heróis como Zorro, que preparavam emboscadas nas estradas, invadiam as fazendas dos latifundiários, promoviam justiça e vingança enquanto iam convertendo novos devotos para suas causas sociais. Nada é forçado, afinal as narrativas todas convergem para um ponto em comum: as sociedades camponesas apoiavam esses bandidos e não os denunciavam, quando muitas vezes não se tornavam cúmplices de seus atos, afinal eles prometiam mais justiça social do que o establishment vigente naqueles momentos.
O sentimento de revolta e a urgência de mais justiça social têm atingido o Ocidente em cheio desde a última quebra do sistema financeiro, em 2008, e mais agudamente a partir da pandemia da Covid-19. Ali, os privilégios das classes dominante ficaram escancarados: todos deveriam ficar em casa, mas somente alguns o puderam fazer, mais ou menos como Orwell evocava com “todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros” em sua “Revolução dos Bichos”.
Isso se reflete na indústria cultural e suas produções. Saem as sitcoms sobre jovens brancos ricos e a enxurrada de produções com zumbis – críticas às massas acéfalas atingidas pelo consumismo – e entram as comédias afirmativas e distopias abordando o que Marcia Tiburi chama de turbotecnomachonazifascismo, seja “O Conto de Aia”, “Years and Years” ou “Ruptura”.
Na literatura, uma mudança de paradigma atingiu em cheio as editoras no mundo todo, e quem investiu em diversidade saiu ganhando. Aqui no Brasil, Fósforo e Todavia tiveram seus catálogos impulsionados depois que as apostas certeiras em Annie Ernaux e Han Kang deram frutos em forma de prêmios Nobel, e teve até branca que tornou-se imortal da Academia Brasileira de Letras por escrever sobre racismo (contém ironia – que seria maior se a cadeira ocupada fosse a de Machado de Assis).
No entanto, seguindo um caminho muito parecido com o do rap norte-americano, a música brasileira não soube exatamente absorver esse sentimento de contestação através da arte. Pelo contrário, tornou-se amplificadora de violências de gênero, raça e classe, a ponto em que o Congresso começou a discutir a tal “lei anti-Oruam”, um rebote conservador que impede a contratação de artistas que fazem algum tipo de “apologia ao crime” com dinheiro público, mais ou menos no mesmo momento em que a Companhia das Letras republicava “Rebeldes Primitivos”. Não que seja novidade, já que o Planet Hemp vem sofrendo retaliações parecidas, e até cadeia, há uns 30 anos.
Enquanto os músicos sertanejos que promovem o consumo de álcool e formas de relacionamento duvidosas com mulheres ficam de fora dessa lei moralizante, embora alguns deles comecem a ser investigados por relações com o crime organizado, apostas ilegais, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, o projeto de lei anti-Oruam visa mesmo atingir gente não-branca e gêneros musicais como o funk e o trap. Por extensão, virá fechar a torneira dos financiamentos públicos através de programas de fomento como Paulo Gustavo e Rouanet. Em outras palavras, mais uma camada de censura institucional.
Mas espera aí! Não é preciso ter um grande domínio da linguagem para entender uma diferença clara entre as mensagens de quem fez o rap existir no Brasil, gente como Thaíde, Sabotage, Racionais, Negra Li e muitos outros, e a turma do trap de hoje. Se houvesse qualquer tipo de fomento a algum tipo de rebeldia ou banditismo, era à moda dos “Rebeldes Primitivos” de Hobsbawm, e não dos selvagens de terra arrasada pós-capitalista de Mad Max, reproduzindo a violência, a ganância e a vida sem limite de velocidade dessa gente de hoje. Não estou apenas falando de gente como Mc Reaça, homenageado depois de morto pelo capitão Jair Bolsonaro, mas de 50 Cent e Snoop Dogg, que apareceram de mãos dadas com Donald Trump depois de sua última eleição.
A música é o caminho mais fácil para o sucesso hoje em dia. É fácil de fabricar se você recorrer à tecnologia de ponta, que oferece samples eletrônicos de qualquer instrumento conhecido e até a possibilidade de manipulação completa da voz através de programas como Auto-Tune. Como é uma arte cujos apreciadores não se importam tanto com autoria quanto com performance e produção, há uma carga importante na figura do astro, que também é relativamente simples de se alcançar comprando números nas redes sociais. Da mesma maneira, o shuffle das rádios e dos streamings digitais, igualmente manipuláveis, promovem altíssima penetração, até que vem a pergunta: quem nasceu primeiro, o Tigrinho ou o funk que promove o jogo irresponsável?
Isso criou uma geração de desmiolados que não são muito diferentes de muitos jogadores de futebol por aí. Querem ter tudo, o mundo a seus pés, mas sem arcar com qualquer responsabilidade pelo que fazem e falam.
Nada disso justifica censura prévia ou análise de agentes do Estado, mas deveríamos estar dedicando mais tempo para a degradação causada por esse tipo de artista – que normalmente a esquerda defende sem separar o joio do trigo sob a ótica da defesa das subjetividades e uma censura prévia de quem contesta isso como se qualquer crítica fosse automaticamente algum tipo de preconceito. Em vez disso, continuamos apontando o dedo para o agronejo, o que nos tira qualquer capacidade de reagir e analisar realmente as causas do problema, e, quem sabe, melhorar.
Rebeldes com causa
A editora Âyiné lançou no último mês o livro “Amanhã talvez o futuro: escritoras e rebeldes na Guerra Civil Espanhola”, uma pesquisa da jornalista britânica Sarah Watling que narra a história de mulheres que foram até o país europeu para lutar, sem sucesso, contra a ascensão do fascismo nos anos 1930.
Este é o quarto volume da coleção “À Margem” da editora, que trata especificamente de relatos além das narrativas brancas tradicionais. Os trabalhos de edição e diagramação são lindos, à altura de uma obra que já foi publicada em diversas línguas ao redor do mundo, e que finalmente chega ao Brasil.
Por enquanto, trata-se apenas de uma breve indicação, já que o livro estava aqui na fila de leituras aguardando eu terminar a leitura de “Rebeldes Primitivos”. Espero retornar ao tema muito em breve.
Até a próxima,
A.T.