Eu ando cansada. Não só por conta do trabalho “tradicional”, mas tudo o que implica hoje ser uma profissional – ou que teoricamente disseram que seria. Não basta “só” fazer as coisas comuns do dia a dia, também precisamos mostrar que estamos fazendo, curtindo, comendo, viajando, fazendo yoga, lendo, comprando, por aí vai. E caso alguém ainda tenha alguma dúvida: fazer um vídeo não leva “só cinco minutinhos”.
Dito isso: me sinto cansada pela forma como estamos vivendo as nossas vidas e como estamos enxergando a vida dos outros, sempre por um recorte. Ontem, vi um vídeo no TikTok de uma pessoa que flagrou um casal simulando uma tarde romântica à beira mar: deu os segundos do take, corta, pega o telefone do tripé, desliga o ring light, e nem beijinho rolou entre os dois longe do celular. É isso que viramos?
Me preocupo.
Dia desses, também li uma reportagem muito boa sobre como a geração Z sente falta dos tempos pré-internet, o famoso “saudades daquilo que não vivemos”. Olhando registros dos anos 1990, feitos por câmera VHS, eles projetam uma nostalgia que nem é deles – e, por isso, replicam a estética em vídeos contemporâneos com filtros analógicos e buscam atividades fora das redes sociais (o que explicaria o aumento dos clubes de jogos de tabuleiro em Nova York, por exemplo).
Será que mimetizar o passado seria a resposta?
Sinto que não, porque tudo corre o risco de virar uma performance na era do cansaço extremo, da exposição para além dos limites do bom senso e da constante reformulação da sociedade obcecada pela vida alheia – alô, tabloides. Arrisco dizer que nem instalando um número fixo na sua casa seria a saída em busca de uma vida offline em que é possível resolver coisas de adulto sem precisar falar com um bot no WhatsApp.
A questão é que normalizamos não ligar mais na pizzaria do bairro, não aceitar o tempo de ócio, não aguardar o Jornal Nacional no fim do dia para receber as notícias apuradas, não brincar por brincar, não comer por comer, não ver filme porque gostamos, não ler porque é um hobby, não praticar esportes pelo bem-estar, não realizar uma atividade sem ter outra sobreposta (muitas vezes, mediada pelo vício em telas). E mesmo que a tecnologia tenha, sim, os seus benefícios, soa como se todos nós tivéssemos aceito os termos e condições de uso da existência em dois mil e vinte e algo sem entender ou se questionar do básico. Por isso, foi tão fácil cair na armadilha do capitalismo tardio e 1) monetizar a própria rotina; 2) escancarar a intimidade; 3) fingir que somos especialistas-atletas-profissionais-humanos perfeitos em tudo o que fazemos.
But I hate to break it to you: não somos – talvez daí venha o cansaço.
Na Dazed, Thom Waite fez um texto ótimo sobre como até as listas de Letterbox viraram um grande show de quem é mais cult que quem, e porque o filme do diretor-que-ninguém-assistiu-só-você é melhor do que aquele já mainstream produzido pela A24. Fazer listas de melhores coisas (para ver, comer, ler, conhecer) é bastante comum na cultura e no jornalismo desde os anos 1950, mas tudo hoje tem esse fundo de intenção, tudo é por causa da #trend. Deixamos a despretensiosidade lá atrás. É triste perceber que desde “o filme da vez” até as relações de amizade são feitas por algum ganho sócio-digital.
A sociedade, em geral, me parece em fuga das complexidades que nos tornam humanos: dos erros, das sombras, das dicotomias. Todo mundo finge que está bem, que o mundo acabando não nos atinge, que o trauma da pandemia foi sanado… Vivemos performando nossas projeções ideais do “si mesmo”, enquanto rasgamos nosso pacto pessoal com a moral e a ética que nos fundamenta. Estamos à beira do abismo entre a psicopatia e o surto coletivo, mas precisamos garantir que, ao menos, tudo seja filmado – contém ironia.
Caso queria emburacar no assunto…
(Livro) Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han
(Livro) Agonia do Eros, Byung-Chul Han
(Livro) A Reinvenção da Intimidade, Christian Dunker
(Livro) 1984, George Orwell
(Livro) Os Despossuídos, Ursula K. Le Guin
(Filme) Sweat, Magnus von Horn – tem na Mubi
(Filme) Reality+, Coralie Fargeat – tem na Mubi
(Filme) Ingrid Goes West, Matt Spicer – tem no Prime Video
(Filme) Mainstream, Gia Coppola – tem para alugar na Apple TV+
(Podcast) Intimidades Sintéticas, Vibes em Análise – escute aqui
Que texto, querida. Obrigada por esse respiro <3
Excelente reflexão! Sempre penso em como a presença nas redes foi se tornando aos poucos, um medidor de sucesso quase que obrigatório e hoje se transformou, para mim, nessa pandemia atual causadora da exaustão que nos atravessa em todas as camadas do cotidiano.