#4 Kanye West e a banalização do mal
Como o cinema e a literatura podem nos ajudar a compreender o estado atual das coisas
Em uma das cenas finais de “Laranja Mecânica”, Alex sofre lavagem cerebral instituída por agentes do estado a fim de torná-lo um ser humano mais dócil e encaixado na sociedade. A atuação impecável de Malcolm McDowell, com seus olhos repuxados presos em ganchos metálicos, não tem saído da minha cabeça.
O ano de 2025 começou mesmo quando o maior bilionário do mundo decidiu bater uma continência suspeita com os braços inclinados em um ângulo de 45º acima de sua cabeça. Desde então, estamos sendo obrigados assistir indefesos uma normalização cada vez maior de discursos e comportamentos extremistas através das mídias hiperconectadas, sejam empresas de jornalismo ou nas redes sociais.
Não tão distante, um grande astro do rap desfila com sua esposa completamente nua no tapete vermelho do Grammy e depois decide anunciar a venda de roupas estampadas com aquelas cruzes que não são budistas em pleno intervalo do Super Bowl. O que poderia ter sido uma discussão interessante sobre racismo e misoginia levantada por Kendrick Lamar, Serena Williams e Samuel L. Jackson, na apresentação da noite mais importante do futebol americano, foi ofuscada por um idi*ta que preferiu twittar que amava o totalitário de bigode.
Através dos meios de comunicação, assistimos diariamente gente famosa como Kanye West e anônimos cometerem horrores, e não podemos fazer nada a respeito. As manchetes são empurradas para nós, estão em todos os lugares as fotos, os prints e os quotes que invadem as telas dos celulares. Enquanto a violência é decantada em dopamina, vídeos fofos de animais de estimação são exibidos na sequência de memes que relativizam todo tipo de absurdo e, assim, tudo se torna igualmente banal.
No ano passado, o tema fundamental de “A Substância” foi igualmente decantado por uma enxurrada de memes que serviram para normalizar o culto à beleza e o uso de drogas e procedimentos estéticos excessivos em busca de uma juventude duradoura e de beleza infinita. Além disso, o monstro Demi Moore/Margaret Qualley foi reduzido pela crítica e audiência, taxado como excesso, uma cena desnecessária no encerramento do filme. Coordenado ou não, esse discurso foi amplificado muito mais do que qualquer mensagem body-positive ou denúncia contra farmacêuticas que eventualmente chegaram a aparecer por aí.
Lançado durante a pandemia de Covid-19, o seriado britânico “Years and Years” previu muito bem nosso presente distópico. Tal qual a primeira-ministra extremista Vivienne Rock que é substituída em determinado momento por um fantoche feito de inteligência artificial – em uma interpretação brilhante de Emma Thompson –, começamos a ver as mãos nem tão invisíveis dos conglomerados de tecnologia interferindo pesado nas nossas vidas. Ao mesmo tempo, o filho de seis anos de Elon Musk diz a Donald Trump, diante de câmeras transmitindo para o mundo todo, que ele não é o presidente.
Difícil também não lembrar do clássico cult “Eles Vivem”, de John Carpenter, quando de repente nos deparamos com um deep state composto por alienígenas que se infiltraram nas maiores instâncias econômicas e de poder. Conseguindo, assim, espalhar mensagens subliminares simples como “Coma” e “Obedeça” pelo mundo, tornando a sociedade toda em um rebanho domesticado pronto para as delícias e horrores do fast food, da música pop e das fofocas sobre famosos.
Talvez o melhor livro para entender como uma confluência de extremos tem gerado a situação atual é “Salazar e os Fascismos”, lançado pela Tinta da China e escrito pelo historiador português Fernando José Mendes Rosas. Na obra bastante acadêmica, ele faz um estudo comparado de todos os governos totalitaristas da Europa de um século atrás, não ficando apenas nos exemplos mais conhecidos do alemão, do italiano e do espanhol, tomando o ditador português como exemplo. A partir daí, mostra como fascismo não se trata apenas de genocídio e violência sistêmica contra um inimigo inventado – o mais famoso dele, os judeus. É esclarecedor por escancarar o óbvio: convivemos com e validamos diariamente comportamentos violentos. Quer ver só?
Vencedor do prêmio Jabuti do ano passado, “O Crime do Bom Nazista”, do autor gaúcho Samir Machado de Machado, faz questão de nos ensinar algo absolutamente escondido nas escolas fundamentais: as primeiras vítimas do nazismo foram os homossexuais. Na Alemanha, as perseguições contra pessoas com relacionamentos homoafetivos serviram de balão de ensaio para a guetificação dos judeus e outros povos considerados inferiores pelos arianos. Igualmente, quem se casava com pessoas de outras etnias também poderia ter um destino cruel, e a história do cineasta Fritz Lang e sua esposa, a atriz, autora e também cineasta Thea Von Harbou é um exemplo disso.
Boatos históricos dão conta de que o casal foi bastante liberal em seu relacionamento durante a fase mais profícua dos trabalhos de Lang e Harbou, incluindo “Dr. Mabuse”, “Os Nibelungos”, “Metrópolis” e “M – O Vampiro de Dusseldorf”. No entanto, Lang fugiu da Alemanha após gravar uma continuação de Mabuse, em 1933, quando Thea fortaleceu suas relações com o partido nazista e foi trabalhar com propaganda do estado ao lado de Goebbles. Pouco antes, o diretor a pegou na cama com um jornalista indiano 17 anos mais jovem, Ayi Tendulkar, com quem acabou se casando. Mesmo assim, anos depois foi presa pelo Reich mesmo tendo atuado ao lado de cineastas colaboracionistas, como Veit Harlan, Josef von Baky, Hans Steinhoff e Erich Engel, e libertada pelos britânicos apenas em 1945, com o fim da guerra.
Voltando às escolas, é importante mencionar “A Fita Branca”, do cineasta alemão Michael Haneke, que trata do ensino de violências nos espaços de educação infanto-juvenis. Já Fernando José Mendes Rosas teoriza em seu livro que um dos principais motivos por vivermos novamente a iminência de estados totalitários é o fato de que também não aprendemos em sala de aula que qualquer fascismo é resultado da distensão do sistema econômico liberal. Apontando para críticos neoliberais como Hannah Arendt, Mendes Rosas os acusa de passar pano para as ideologias do capital nos seus estudos sobre extremismos durante o século 20.
É mais ou menos como continuar ensinando sobre a “época dos descobrimentos” portugueses, como bem lembra Grada Kilomba em seu “Memórias da Plantação”. Enquanto a educação continuar sendo dada dessa forma, nos só daremos conta novamente do horror quando ele já tiver destruído vidas e lugares demais.
Enquanto isso, um rapper pinta e borda suásticas e executivos pulam em montanhas de dinheiro tais quais o Tio Patinhas.
A.T.
Adorei seu texto!
Quando vc cita 'Eles Vivem' me deu um gás ainda maior pra continuar a leitura! E leitura, aliás, maravilhosa da "loucura" que a gente vive...