Não é de hoje que as editorias de cultura (se ainda existem) estão pautadas em listas de indicações e comentários superficiais de livros, filmes, festivais, feiras e eventos diversos na desculpa de que “o algoritmo entrega mais isso que aquilo”. Acrescente a falta de repórteres e editores especializados nas redações e você encontra a equação do erro. Uma sessão tão importante para a valorização artística nacional e mundial cada vez mais minguada de oportunidades e relevância.
Um caso recente para dar de exemplo é o do rapper brasileiro que ficou em destaque no noticiário não por sua sólida carreira ou pelo lançamento de mais um projeto apoteótico, mas pela briga com o seu ex-empresário por conta de dinheiro.
No mesmo período, ou quase, as mais diversas redações lembraram da existência dos maravilhosos filmes do Studio Ghibli e do trabalho de Hayao Miyazaki. Aos 84 anos, a figura lendária, talvez o maior mestre vivo das animações em 2D, não ganhou retrospectiva nem homenagem. Ao contrário, sofreu apropriação por uma ferramenta de inteligência artificial e teve sua estética replicada à exaustão em mais uma trend viral. A mídia, então, decidiu repercutir o fato ao invés de problematizá-lo – ou ao menos chamar um especialista (de verdade!) para. Talvez quem sabe um contra-fluxo, resgatar a relevância de filmes como “A Viagem de Chihiro” (2001), “Meu Amigo Totoro” (1988) e “O Castelo Animado” (2004) em uma análise mais profunda sobre o impacto da arte na vida das pessoas.
Vocês devem se lembrar que nem tanto tempo atrás, quem foi vítima de tal usurpação estética e criativa foi Wes Anderson. Nas redes, até vídeo vendendo pacote de viagem roubou o visual do diretor. A diferença é que, neste caso, não era o Chat GPT responsável pela réplica, mas perfis de influenciadores, marcas e empresas de setores variados que esvaziaram de sentido a construção visual-narrativa do cineasta – sem nem piscar.
Há anos, as editoras vêm sofrendo as consequências da descentralização das notícias e das opiniões. O que antes ficava a cargo de um longevo colunista em um jornal diário ou de uma crítica respeitada, hoje pertence a muitas pessoas (até as “quaisquer” umas). A SP-Arte aconteceu, mas ninguém leu entrevista nenhuma com artistas jovens ou consagrados que estiveram por lá. Nas páginas físicas ou digitais, apenas ricos, famosos e colunáveis segurando taças de champanhe nos corredores do Pavilhão da Bienal. Nem a crítica, seja ela boa ou ruim, tem espaço, colocando o jornalismo num estado “chapa branca” para não criar ruídos com (potenciais) anunciantes.
Poucos meses atrás, quando o Brasil ganhou um Oscar inédito de melhor filme internacional por “Ainda Estou Aqui”, e, na mesma época, “O Último Azul” venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim, tudo se resumia ao jargão do “é preciso dar visibilidade para as produções nacionais”. Enquanto o filme de Gabriel Mascaro ainda não chega aos cinemas, pouco se ouve e se fala nele – e tantos outros que se apegam a um suspiro para conseguir a atenção merecida. Nessa lógica, a Fernanda Torres dá clique, mas aquela cineasta-revelação que só faz curtas, não. O Festival de Cannes é importante, mas o de Ouro Preto nem move o interesse das redações. Assim, permanecem invisibilizados as companhias de teatro, os cineastas independentes, os autores marginais, os músicos que não fazem hits de um minuto e meio, quem se apresenta nos SESCs etc.
A comunicação, em geral, está estafada. São inúmeros os conteúdos produzidos por dia para diferentes aplicativos. Nesse aqui é foto, naquele ali é áudio, no outro é vídeo – todos fadados a medir notoriedade por um número irreal de visualizações ou alcance. Tudo isso com as redações cada vez menores, com menos investimentos, sobrecarregando funcionários e limando editorias – como a de cultura, em muitos casos. Quiçá, contratam-se freelancers para tapar alguns buracos, e aí temos uma cobertura cultural empobrecida. Enquanto isso, dados mostram que um real investido na economia criativa se transforma em oito. Sim, é um vespeiro difícil de mexer – e de conversar sobre –, mas todos nós precisamos nos envolver nessas elaborações (quem faz, quem consome, quem investe).

Sem a imprensa responsável, longe de modismos de redes sociais ou clickbaits de audiência não qualificada, é difícil termos um futuro condizente com as necessidades sociais. O “não dá clique”, portanto, precisa parar de ser a regra que define a qualidade de uma reportagem, personagem ou obra de arte.
Links que talvez te ajudem nessa jornada
A primeira newsletter do “Arte em Cena” é sobre o poder da escuta – e tem tudo a ver com essa conversa aqui.
Se você curte ler sobre comunicação, não deixe de fora da sua lista o clássico “O Meio é a Mensagem”, de Marshall McLuhan – foi publicado originalmente em 1967, mas está mais atual do que nunca.
Streamings – alguns gratuitos – que podem te ajudar no mergulho da nossa cultura cinematográfica, dos mais antigos aos mais recentes: Telecine (via Prime Video), SPCine Play e Itaú Cultural Play.
Todo mundo precisa ouvir Hayao Miyazaki falando sobre o que significa ser um artista.
Gabriel Mascaro em entrevista sobre a inspiração para fazer “O Último Azul”.
Sempre necessário pensar sobre o lugar da cultura na comunicação de massa. Com a segmentação das plataformas, caberia ao jornalismo um papel de comunicar de verdade e fazer emergir mais do que aquilo que "fura a bolha" e é capaz de atingir uma notoriedade transversal. Até o mainstream precisa ser over para ter espaço. Tudo que ocorre à margem, depende de si e de um algoritmo "gentil" para criar público, ainda que micro.
obrigada por levantar essa bola! que venham mais comentários sobre o estado do jornalismo cultural e caminhos alternativos para que se construa algo melhor do que o presente. :)